segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Pesquisas sobre o Programa Mais Médicos: análises e perspectivas

A edição 21.9 da Revista Ciência & Saúde Coletiva se entitula o "Programa Mais Médicos: análises e perspectivas". Este número temático foi organizado em parceria do Comitê Coordenador da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde (APS) da Abrasco com a Organização Pan-Americana da Saúde.

Nesta edição, divulgam-se os primeiros resultados avaliativos do mais novo programa do SUS, o "Mais Médicos" que completa três anos e, atualmente, está presente em 4.058 municípios do país e nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, sendo constituído por um contingente de mais de 18 mil médicos. Esta é a mais recente iniciativa do Estado brasileiro em busca de ampliação da universalização dos cuidados e dos serviços de saúde, buscando atingir os mais longínquos rincões do país.

Os artigos aqui divulgados abarcam temas relacionados aos seus três componentes do Programa: provimento emergencial, formação médica e infraestrutura das unidades básicas de saúde (UBS). Embora o tempo seja muito curto para se observarem resultados consistentes, o processo em curso permite constatar movimentos de mudanças fundamentais para a consolidação do SUS nesses três eixos, pois, além de agregar medidas emergenciais de provisão de médicos visando ao acesso das populações antes desassistidas, vêm modificando a estrutura de formação dos profissionais com ênfase na medicina da família e da comunidade, orientando a universalização da residência médica, promovendo a ampliação de vagas e mudanças nas diretrizes curriculares dos cursos de medicina.

Quanto à reorganização do sistema, visando aos benefícios para a população em todos os níveis que a impactam, ainda que os efetivos resultados também só possam ser conhecidos no médio e longo prazo, as pesquisas apresentadas já mostram: redução importante do número de municípios com escassez de médicos; implantação predominante nos que apresentam maior vulnerabilidade social; aumento do acesso aos serviços de Atenção Primária; impacto positivo nos indicadores de produção do setor; convergência com outros programas de melhoria da qualidade da atenção básica; e satisfação dos usuários, dentre outros.

No entanto, os desafios permanecem, dentre eles, tentativas de descaracterização do programa ou dos seus pilares, ameaças a seu financiamento, dificuldades de fixação de profissionais em áreas remotas e desfavorecidas e ausência de definição da carreira de médicos de Atenção Primária no âmbito do SUS. Por tudo isso, este número temático cumpre um papel estratégico, oferecendo à sociedade, aos governos e aos gestores, informações fundamentadas que podem subsidiar decisões de investimento. Nunca é demais lembrar que as ameaças de desvinculação de receitas e de constitucionalização de limites para despesas públicas, no contexto de subfinanciamento crônico do SUS, é uma notícia preocupante para a sustentabilidade do Programa. Também, considera-se fundamental estabelecer um processo permanente de monitoramento e avaliação que permita acompanhar os êxitos, corrigir os rumos e demonstrar a efetividade do "Mais Médicos" no médio e longo prazo.


Maria Cecília de Souza Minayo – Editora chefe - cecilia@claves.fiocruz.br

Luiza Gualhano – Assessora de Comunicação Social

Fonte: Scielo





sábado, 15 de outubro de 2016

Redes de comunicação e saúde: somos afetados nas (e pelas) relações. Para (se) submeter ou compor?

Em 11.10.16 aconteceu a segunda aula do curso “Comunicação e Saúde: espaços, estratégias e atuação” promovido pela Associação Paulista de Saúde Pública - APSP. Ricardo Teixeira, docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), grande amigo e parceiro da Rede HumanizaSUS, nos convidou a refletir sobre “Redes de Comunicação e Saúde”. 



Embora contente com a perspectiva de mais uma aula deliciosa, na companhia de velhos e novos amigos, cheguei afetada por um certo desânimo, ainda sob o forte impacto da aprovação da PEC 241/2016 em primeiro turno na Câmara dos Deputados no dia anterior (1). Mas como a luta é sempre constante, me compus junto aos companheiros para pensar sobre saúde e comunicação em mais uma aula. 

Ricardo começa explicando que abordará a comunicação sob o enfoque das relações. Nos lança uma primeira pergunta: por que a comunicação nos move para fazer cursos e pesquisar o tema, por que a comunicação é um problema? Cada participante foi colocando suas ideias: as barreiras à comunicação dialógica entre usuários e gestores do SUS, a falta de acesso à internet, os diferentes signos de linguagem, as diversas ferramentas de comunicação (e-mail, telefone, etc). Perspectivas de dificuldades de comunicação, e uma reflexão linda de uma das participantes: “é muito complexo! O mundo todo é uma comunicação, até durante a gestação já temos um elo de comunicação com o bebê”. 

Instrumentos, meios, canais de comunicação. Abordagens instrumental e transmissionista da comunicação aparecem como um primeiro plano de problema da comunicação. Mas a nossa conversa hoje, acolhendo também essa complexidade, pretende trabalhar a partir de um outro plano. A ideia é radicalizar para refletir sobre a comunicação como uma forma de pensar os nossos problemas humanos, uma forma de pensar a saúde. Uma pegada mais filosófica da comunicação.

Ricardo vai nos dizendo que o problema da comunicação é produzir um comum – radical da palavra comunicação – entre nós. Há um comum entre nós? O problema da comunicação é produzir um comum onde não há nenhum comum entre as pessoas. Um grande paradoxo! Precisamos produzir um comum para a sobrevivência da espécie e este comum não está dado, é uma construção. A produção de uma comunidade – palavra também radicada do comum. Como podemos levar uma vida em comum e constituir uma comunidade?

Vivemos um modo de produção e de existência no capitalismo que parece minar ainda mais as possibilidades de vida em comum. Índios e ciganos foram exemplos de comunidades trazidas por um dos participantes em que o arranjo não individualista favorece a produção desse comum.

E daí partimos para uma espécie de deriva. Redes, vamos falar de redes, o tempo todo falamos de rede: redes sociais, redes de saúde, redes. Mas o que são de fato redes? Uma reflexão a partir de uma espécie de ideograma e de uma definição (bastante abstrata segundo Ricardo, por ser muito geral e abarcar muitas ideias dentro dela) – seguindo o pensar filosófico, vamos pensando por conceitos.





Rede é multiplicidade. Qualquer multiplicidade? Uma multiplicidade pode ser um agrupamento sem ser uma rede. Rede é uma multiplicidade conectada de agenciamentos. Agência, agir. Rede é uma multiplicidade conectada de pontos que agem. Agenciamento traz a ideia de um arranjo de uma coletividade em si mesmo. Uma rede é multiplicidade conectada de…..redes! Uma dobra! Cada nó da rede é um agente. Finalmente, a rede é uma multiplicidade conectada de agenciamentos heterogêneos.

Rede de atenção básica, rede de serviços de emergência, etc, tratam de elementos homogêneos. O grande desafio da comunicação não é produzir redes temáticas (homogêneas), não é uma questão de logística, mas produzir redes territoriais. Um grande desafio do SUS é a rede funcionar como rede. A resposta tem sido instrumental. Mas vamos sair dos nossos exemplos conhecidos, vamos nos tolher os vícios da forma de refletir.

Pensando no corpo como uma rede: nosso corpo pode ser considerado uma multiplicidade conectada de elementos heterogêneos, uma multiplicidade de órgãos, de células, e assim vai. Ainda que pareça, Ricardo não é só coração, e nós participantes não somos apenas ouvidos. E pensando numa sociedade, somos uma rede de corpos conectados por agenciamentos. Pronto, fomos capturados pelo pensamento filosófico!
 
Todo corpo é composto de partes menores extensíveis que estão juntas entre si numa dada relação entre elas. As coisas individuais não vão para uma relação, mas são compostas a partir dessa relação. Essa é uma maneira de pensar invertida, própria de filósofos marginalizados, entre eles Spinosa, grande inspiração desse pensamento da relação como subjacente à subjetividade.


 Rede é uma multiplicidade conectada de agenciamentos heterogêneos: conjunto de partes extensíveis numa dada relação conectada por agenciamentos a outro(s) conjunto(s) de partes extensíveis numa dada relação


O que se passa num encontro entre os corpos? Comunicação é o encontro entre corpos, não apenas de ideias e saberes (concepção cognitiva) mas também entre afetos, reações emocionais que provocamos um no outro. Somos corpos movidos por desejo, flutuamos o tempo todo entre as emoções. Os meios de comunicação de massa funcionam no país atualmente como uma máquina de entristecimento.

O que acontece quando uma pessoa se sente insatisfeito com um ouvidor que nem o olha nos olhos? Não se produziu uma relação neste momento. Como ressignificar uma condição socialmente estigmatizada como no caso de pacientes com AIDS? A turma foi entrando nessa forma de pensar, tentando formular novos problemas. E o debate seguiu durante a aula.

E Ricardo foi compondo os conceitos apresentados com os exemplos trazidos pelos participantes, para percebermos que o problema de comunicação é o tempo todo tentarmos subordinar o outro à nossa relação, e não produzir relações de composição entre nós, que o tempo todo a sociedade capitalista nos expropria. O problema da comunicação é um problema político. E não existe solução definitiva e única para este problema.

A comunicação está intimamente ligada a tecnologias de governo da vida, que incidem no corpo. A potência se restaura no encontro com os outros numa relação de composição, e não de submissão, de decomposição de nossos corpos.

Retomando a minha reflexão da aula passada sobre a legitimação (ou deslegitimação) do interlocutor a partir do contato pessoal com a experiência prática da doença, é possível pensar que o questionamento das prescrições médicas pode também ser entendido como uma força de resistência da pessoa no que lhe é mais peculiar (seu modo de viver) à submissão que quase sempre se estabelece na relação profissional de saúde-paciente.

Quanto à PEC 241, estava capturada pela máquina de entristecimento midiática, pela sensação de impotência e desespero em função da perspectiva de aniquilamento simbólico e material do sistema público de saúde, com redução progressiva do financiamento nos próximos 20 anos. Mas depois da aula (e de uma deliciosa conversa no bar com algumas pessoas da turma) lembrei das inúmeras e crescentes manifestações de protesto contra o projeto nas redes sociais, e percebi que através dessas mobilizações estamos nos compondo enquanto sociedade que defende a justiça social, estamos produzindo um comum na luta pelos direitos sociais.


(4) Artigo de Ricardo Teixeira “As dimensões da produção do comum e a saúde”: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24s1/0104-1290-sausoc-24-s1-00027.pdf




Debate durante a aula a partir da concepção filosófica do processamento industrial de um hambúrguer e analogia com o lugar do usuário na relação com trabalhadores e gestores do SUS na construção do sistema de saúde: da mesma forma que o hambúrguer é o boi submetido à relação de processo de fabricação, a vida do usuário é submetida aos processos, procedimentos e fluxos dos serviços de saúde formulados e implementados por gestores e trabalhadores (a relação é de submissão em ambos os casos). 

Na Rede HumanizaSUS e em outras redes de saúde, os usuários estão numa relação de composição com os demais atores do sistema, e participam da construção e debate da saúde pública. Na RHS sou boi como os demais, não sou hambúrguer. Na RHS sou vaca sagrada, e vaca profana!

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O que é comunicação em saúde?

Na última segunda-feira, dia 03.10.16, teve início o curso de extensão “Comunicação e Saúde: espaços, estratégias e atuação”, promovido pela Associação Paulista de Saúde Pública – APSP. O objetivo do curso é estimular a reflexão sobre o desenvolvimento de tecnologias de comunicação e sua utilização no campo da saúde, assim como sobre os processos e instâncias de mediação.




 

Cheguei à primeira aula – de Wilma Madeira, docente em cursos de pós-graduação do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês (IEP/HSL), Centro Universitário de Volta Redonda e da Faculdade de Medicina do ABC – imaginando como eu e os demais participantes nos comunicaríamos entre nós (quais os contextos intertextual, existencial, e situacional de cada pessoa). Como seria nosso primeiro contato um dia após os resultados do primeiro turno das eleições municipais no Brasil, em que o grande destaque foi o número de votos para “ninguém” (1). Como debater uma importante ferramenta das políticas públicas de saúde – a comunicação! - em um contexto de ausência de interesse dos eleitores pela política e pelos políticos em geral?

Wilma começou a aula com a dinâmica do cochicho: grupos de duas (e um de três) pessoas cochicharam entre si para se conhecer. Cada um conta um pouco de si para o outro, e o outro apresenta a pessoa para o grupo. A partir dessa atividade inicial, já começamos a perceber as modificações sofridas pelas mensagens a partir do contato com o outro. O que falamos é uma coisa, o que chama a atenção de quem nos ouve é outra. Assim cada um apresenta o colega ou a colega de outra forma, diferente da forma como cada apresentaria si próprio ao grupo. Tudo depende do contexto, do termo utilizado, etc, havendo um ajuste para passar a ideia. Existe uma forma correta de passar a informação? A forma correta é passar aquilo que entendi. Temos a necessidade de compreender o que o outro fala. O tempo todo fazemos construções simbólicas de ideias. Quando o outro nos apresenta isso tem uma força de construção do coletivo.

Ao falar sobre os símbolos, Wilma faz uma observação interessante sobre as muitas siglas da área de saúde coletiva: somos especialistas em siglas para deixar as outras pessoas de fora!

Em seguida, Wilma nos propôs uma segunda dinâmica: cada um escreveu em um pedaço de papel o que entendia por “comunicação” e por “comunicação em saúde”, para sabermos quais os conhecimentos prévios de cada participante. E este foi o resultado:



Com essa dinâmica percebemos que ao nos comunicar devemos sempre considerar que cada pessoa tem conhecimentos prévios ao nosso contato com ela, da mesma forma que temos também nossos conhecimentos prévios antes de nos encontrarmos e nos comunicarmos com outras pessoas.

A partir de nossos conhecimentos e ideias previas sobre comunicação e comunicação em saúde, Wilma foi nos passando os referenciais teóricos do campo da comunicação social, e as teorias e modelos de comunicação, entre eles:

- Modelo de Shannon & Weaver (matemático informacional): o emissor passa a mensagem ao receptor através de um canal, e se a mensagem não chega existe um ruído (comunicação é funcional, não é processo social);



- Modelo de Lazarsfeld Schramm (comunicação em duas etapas): mesmo esquema do modelo anterior, mas com inclusão do ruído como integrante do esquema comunicacional, e de mediadores formadores de opinião (comunicação como processo social de duas etapas);

  

- Teoria do Poder Simbólico de Pierre Bourdieu: a sociedade é organizada segundo um capital simbólico (capitais econômico, cultural e social que se retroalimentam), a que corresponde um poder simbólico, que resulta em legitimação do emissor e da mensagem;


- Paulo Freire: comunicação dialógica (partindo da realidade em que as pessoas estão inseridas); 

- Moscovici: comunicação e representações sociais;

- Inezita Soares: comunidades discursivas.

 
Os modelos e teorias comunicacionais acompanharam o contexto histórico-político da época em que se disseminaram, e coexistem em nossa realidade atual.

A teoria de Bourdieu me trouxe várias reflexões em relação ao capital simbólico, e como a legitimação (ou deslegitimação) das falas e das pessoas produz seus efeitos na área de saúde. Lembrei como as pessoas reproduzem informações do médico Drauzio Varella como verdades sobre qualquer assunto. Recebi da minha mãe por whatsapp um vídeo a respeito de uma película protetora da tireoide em exames de raio-x que poderia evitar o câncer, situação aventada como possibilidade numa coluna de Drauzio Varella no programa Fantástico, disseminada nas redes com teor de evidência médica.

É também interessante pensar como um diagnóstico patológico pode influenciar essa legitimação. Muitos clientes me procuram para pedir auxílio em relação à assistência farmacêutica para pessoas com diabetes justamente porque eu tenho essa doença. E vem se proliferando o número de profissionais com diabetes que atendem pessoas com esse mesmo diagnóstico. Seria então o compartilhamento do diagnóstico, a experiência em comum com a doença, uma forma de legitimação dos profissionais, adicional à legitimação pelo conhecimento técnico? Em sentido oposto, alguns pacientes questionam as prescrições dos profissionais de saúde quando percebem sua dissociação da experiência prática com a doença, mesmo confiando no conhecimento técnico do prescritor.

Antes do debate final entre os participantes, Wilma nos faz uma pergunta inquietante: a linguagem limita ou expande o pensamento?




No encerramento da aula, Wilma nos deixou duas questões finais, que combinamos debater na Rede HumanizaSUS (um outro motivo para eu publicar esse post, além de compartilhar a experiência dessa aula deliciosa!):

Qual o modelo teórico de comunicação é o atualmente mais utilizado pelo campo da saúde? Pelo SUS? Identificado nas diferentes mídias?

É possível (útil) conceber uma prática de comunicação dialógica na saúde? Como ela se daria? Qual impacto traria para o imaginário da saúde nas diferentes mídias?

Vamos então ao debate? 


Ainda que "ninguém" tenha sido a escolha política nas eleições municipais, há ainda muitas pessoas que acreditam nas políticas públicas como instrumentos de promoção da justiça social, em especial a política de saúde. E a comunicação e o diálogo são algumas das ferramentas dessa construção colaborativa!


Referência:

(1) Artigo de María Martín publicado no periódico El País "Não voto, não ligo, não confio: a cabeça do eleitor que ‘venceu’ esta eleição municipal": http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/03/politica/1475522954_666169.html



Wilma Madeira fala sobre a aula para a Rádio Web Saúde USP

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Viver em função da doença não é saúde, é cárcere biopatológico

Texto do depoimento/manifestação enviado como contribuição para a Consulta Pública CONITEC/SCTIE Nº 25/2016 - Insulinas Análogas Diabetes Mellitus 1


Há 30 anos tenho diabetes tipo 1. Fui diagnosticada aos 09 anos de idade, em 1986. Na época, as únicas insulinas existentes eram as insulinas NPH e Regular, também as únicas que hoje integram o Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas do SUS para o tratamento de diabetes, na forma da Portaria nº 2.583/2007. O controle glicêmico com essas insulinas era bastante difícil, praticamente impossível. Não eram raras as ocasiões de hipoglicemias e de hiperglicemias, as oscilações extremas eram uma constante. Minha mãe lecionava no período da manhã e no período da noite, e tinha grande preocupação com a queda da minha glicemia na sua ausência. Em uma ocasião, quando me viu trêmula, suando frio, com os lábios roxos e o rosto pálido, correu para fazer um suco de laranja, deixando escorregar do dedo para o lixo sua aliança de casamento. Assim, ela costumava me dar uma grande quantidade de alimentos antes de sair para trabalhar, para ter certeza que eu não teria uma hipoglicemia grave na sua ausência1.

Eu era uma criança bastante disciplinada, nos estudos e no cuidado com a saúde. Tinha a resposta na língua quando algum amigo de escola me oferecia balas e outros doces “não, obrigada, sou diabética!”. Mas, mesmo seguindo à risca as recomendações do médico endocrinologista e da nutricionista, com a terapia medicamentosa à base das insulinas NPH e Regular não conseguia controlar a glicemia de forma adequada. Em função do descontrole glicêmico, aos 10 anos de idade fui diagnosticada com catarata, uma das complicações do diabetes. Gostava muito de ler livros de poesia (meu preferido era “Cânticos” de Cecília Meireles, com poemas curtos e profundos), mas não conseguia ler romances, mesmo os infantis, porque a dificuldade de enxergar com a catarata nos dois olhos atrapalhava o acompanhamento de textos mais longos. Eu usava uma lupa para conseguir ler e escrever (sem ela não enxergava a tinta da caneta esferográfica), o que gerava bastante curiosidade nos meus amigos de escola. Mas, apesar disso me incomodar um pouco, sentia-me feliz por seguir estudando. À medida que a catarata progredia, eu, minha mãe e a escola buscávamos adaptações para a continuação do meu aprendizado escolar. Durante um tempo, quando nem com a lupa eu conseguia enxergar mais (à distância não via rostos, via borrões ambulantes, e reconhecia as pessoas pela forma de caminhar), minha mãe lia e gravava os textos escolares numa fita k7. Eu os ouvia, decorava, e fazia as provas de forma oral com a coordenadora da escola.

Aos 16 anos minha capacidade de visão com a catarata se reduziu a 30%, e eu já não conseguia seguir estudando. Tentamos outras formas de adaptação, mudei para uma turma de magistério (com menos conteúdos de física e química, as mais difíceis de aprender sem conseguir ler), mas mesmo assim as matérias não cabiam mais numa k7, minha mãe não tinha tempo suficiente para ler e gravar todos aqueles textos (e ainda trabalhar e cuidar da casa) e, mesmo se tivesse, minha memória não comportava mais tanto aprendizado sem o auxílio da escrita e da leitura. Decidimos então planejar um procedimento cirúrgico. O oftalmologista não recomendara uma cirurgia até então porque eu estava em fase de crescimento, e também porque estávamos tentando fazer a catarata regredir através do controle da glicemia, o que se mostrou infrutífero – tanto o controle da glicemia quanto a regressão da catarata.

Mas para fazer a cirurgia, era necessário alcançar o controle glicêmico prévio para evitar complicações cirúrgicas, já que o diabetes mal controlado favorece o aparecimento de infecções. O dilema estava posto: a catarata se desenvolveu porque eu não conseguia o controle glicêmico aceitável, e a regularização da glicemia era justamente a condição para a realização do procedimento cirúrgico que me traria de volta a visão.

Começamos então um sistema de controle estrito da glicemia. Minha vida se direcionou especificamente aos cuidados com dosagem de insulina, alimentação e exercícios físicos. A continuidade dos estudos havia se mostrado impossível com a visão reduzida a 30%, mas era igualmente impossível controlar a glicemia vivendo uma vida normal. Assim, tive que parar de estudar, porque não enxergava e porque precisava de uma rotina mais rígida para estabilizar a glicemia. Durante este ano de 1993, vivi em função da doença, tudo o que fazia se direcionava ao controle da glicemia. E esta foi a única vez em que, utilizando as insulinas NPH e Regular, consegui manter os níveis glicêmicos num padrão aceitável. Realizei a cirurgia, continuei o esquema rígido de vida em função da doença – insulina, alimentação, exercício – até o fim do ano, o que garantiu o sucesso do procedimento, sem complicações pós-operatórias. Mas perdi um ano escolar, e em função de uma limitação física, origem de desconforto e revoltas posteriores, e de muitas sessões de terapia psicológica. Eu nunca havia “ficado de recuperação”, como dizíamos na época, e repeti de ano. Foi bem difícil pra mim! Mas retornei aos estudos no ano seguinte e, desenvolvendo uma vida normal, as glicemias voltaram a oscilar.

Em 1996 comecei a usar o análogo de ação rápida, que havia chegado há pouco no Brasil. Diferentemente da insulina Regular, que deve ser aplicada meia hora antes das refeições pois só começa a atuar depois de 30 minutos, o análogo de ação rápida começava a fazer efeito em até 15 minutos, permitindo a sua aplicação imediatamente antes das refeições. Além disso, o tempo de atuação acompanhava o processo de digestão, diminuindo as hipoglicemias pós-prandiais2. Durante este ano estava fazendo cursinho pré-vestibular, acordava bem cedo para ir às aulas pela manhã e não podia sair sem me alimentar, pois isso aumentaria as chances de uma hipoglicemia. O início do efeito do análogo de ação rápida em menos tempo me ajudou bastante nessa época, pois estudava o dia inteiro, inclusive nos sábados, e precisava de boas horas de sono para recuperar as energias para seguir estudando. Poder dormir meia hora a mais por dia, sem a necessidade de acordar meia hora antes de tomar o café da manhã para aplicar a insulina Regular (como antes acontecia), era uma vantagem extraordinária! E a significativa diminuição das hipoglicemias também era um fator favorável à melhora da disposição para seguir a rotina de estudos.

No ano seguinte saí da casa dos meus pais em São José dos Campos para cursar a faculdade de Direito em São Paulo. Durante os anos da graduação a diminuição das hipoglicemias e o efeito mais rápido do análogo de insulina de ação rápida também foram essenciais à minha formação. De início, tive que aprender a administrar meu tempo cuidando de mim mesma e do apartamento onde morava (contas a pagar, alimentos para comprar e preparar, etc), junto com os estudos. Minhas aulas eram no período noturno, e eu chegava em casa entre 23h00 e 0h00 para jantar. Se estivesse usando a Regular nesta época, não conseguiria esperar meia hora para comer. Certamente dormiria sem me alimentar, o que aumentaria as chances de hipoglicemia noturna, para a qual meu corpo normalmente já tende.

Com o primeiro estágio, veio também a primeira caneta aplicadora: eu passava o dia fora de casa trabalhando e estudando, e a insulina em frasco, fora da geladeira, poderia estragar. Ainda enfrentava problemas para preparar a dose de insulina na seringa em ambientes públicos. Em alguns locais, até mesmo com a caneta era abordada por seguranças, situação vivida por muitas pessoas com diabetes, bastante relatada nas redes sociais. A insulina da caneta prescindia de refrigeração e preparação, bastando acoplar a agulha para possibilitar a aplicação. Sem o análogo de insulina de ação rápida, cursar a faculdade, trabalhar, e cuidar da minha saúde não seria possível. Seria impraticável administrar as atividades domésticas, laborais e estudantis tomando a insulina Regular meia hora antes de todas as refeições.

Em 2004 substituí a insulina basal NPH pelo análogo de ação lenta glargina, e verifiquei uma redução ainda maior nas oscilações glicêmicas. Desde 2012 faço uso de bomba de infusão de insulina, e consegui reduzir as hipoglicemias graves a menos de uma vez por ano, mantendo a hemoglobina glicada abaixo de 6,5% nesses últimos 04 anos. Mas essas terapias medicamentosas, assim como a necessidade de uma linha de cuidado para diabetes tipo 1 pelo SUS, não estão sendo analisadas nesta Consulta Pública.

Ao todo, portanto, foram 10 anos usando a insulina Regular e 18 anos usando a insulina NPH. Meu corpo carrega esta memória metabólica de quase duas décadas sem um controle glicêmico adequado. Mesmo conseguindo atingir níveis glicêmicos mais baixos e com menos oscilações após a mudança para a terapia com análogos de insulina, devido ao longo tempo de exposição ao descontrole glicêmico, convivo com mais duas complicações do diabetes: retinopatia e neuropatias periférica e autonômica. Dependo do sensor de glicose intersticial da bomba de infusão de insulina para viver com segurança, já que perdi os sintomas de hipoglicemia e hiperglicemia. Algumas vezes apenas eles se manifestam.

Conheço muitas pessoas com cerca de 30 anos de diagnóstico de diabetes que, assim como eu, utilizaram as mesmas insulinas hoje disponíveis no SUS. A maioria tem as mesmas complicações da doença que eu tenho, e algumas delas ainda tem nefropatias. Raros são os casos de pessoas com mais de 20 anos de diabetes hoje, que se trataram com as insulinas Regular e PNH, sem complicações da doença. Em regra, são pessoas que viveram de forma totalmente devotada à doença – e não à própria vida.

Infelizmente, essas melhorias que todos nós pacientes com diabetes experimentamos com a mudança da insulina Regular para os análogos de ação rápida não estão devidamente documentadas e comprovadas em pesquisas científicas criteriosas, conforme demonstra a presente análise da CONITEC. Todavia, essas melhorias são reais, os pacientes vivem melhor. Esta é uma unanimidade entre as pessoas com diabetes que já usaram as duas tecnologias. Ouso adivinhar que todos os depoimentos de pacientes nesta Consulta Pública atestarão a experiência de melhoria, nenhum paciente dirá que não sentiu diferença para melhor em sua vida. Como então tornar acessível a todos no Brasil um tratamento que realmente traz benefícios para o desenvolvimento de uma vida normal (não dedicada à doença, mas aos sonhos e desejos da pessoa), se as pesquisas não refletem o que experimentamos em nossa vida?

Saúde é a possibilidade de desenvolver as atividades da vida pessoal e profissional, com autonomia, em busca da felicidade. Saúde é direito de todo cidadão brasileiro e dever do Estado, garantido mediante políticas que visem à redução do risco de agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, com acesso integral e focado na prevenção, e participação da comunidade (artigos 196 e 198, da Constituição Federal).

A partir dessas premissas, espero sinceramente que a Conitec reconsidere sua recomendação inicial, e ao final recomende a incorporação dos análogos de ação rápida ao SUS para tratamento de diabetes tipo 1, ainda que para casos específicos.


Tal recomendação deve também considerar que:

- são válidas as contribuições dos pacientes nesta Consulta Pública;

- não devem ser relevadas as evidências referentes à superioridade dos análogos de ação rápida em relação à insulina Regular no que tange à diminuição das hipoglicemias, principal preocupação da vida quotidiana das pessoas e dos familiares das pessoas com diabetes;

- o uso da insulina Regular é impraticável no modo de vida contemporâneo, já que ninguém consegue desenvolver a vida com autonomia e desenvoltura sob o jugo da aplicação de insulina meia hora antes de todas as refeições do dia, e ainda sob o risco de uma hipoglicemia no caso de impedimento da alimentação em exatamente meia hora – o que dispensa a necessidade de evidências científicas;

- outros países com sistemas universais de saúde, como o brasileiro, adotaram os análogos de insulina de ação rápida.


Fornecendo a insulina Regular, o Estado não dá prioridade ao desenvolvimento normal da vida das pessoas com diabetes tipo 1, mas impõe a elas a devoção à doença para conseguir o controle glicêmico adequado. E considerando que nem todas as pessoas ostentam condições econômico-sociais e familiares aptas a uma escolha, muitas delas (as mais humildes) serão condenadas a viver com múltiplas limitações incapacitantes do diabetes, antes de morrer precocemente. E também serão necessários investimentos no SUS para atender essas pessoas, mas sem lhes dar a chance de viver uma vida melhor, sem atender à diretriz da integralidade com foco na prevenção.

Viver em função da doença não é saúde, é cárcere biopatológico. Espero que a avaliação final da Conitec privilegie o direito à saúde e à dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direitos no Brasil (artigo 1º, III, da Constituição Federal). E espero que meu depoimento, somado aos demais desta Consulta Pública, contribuam para a reforma da recomendação inicial da Conitec, para que ao final seja recomendada a incorporação ao SUS dos análogos de ação rápida para o tratamento de pessoas com diabetes tipo 1.

Débora Aligieri


1. Trabalho como advogada na área de saúde e uma das minhas atividades é auxiliar o acesso à assistência farmacêutica de pessoas com diabetes. Muitas delas são crianças, e a pergunta mais comum das mães é “Eu conseguirei dormir tranquila algum dia?”. Boa parte não dorme uma noite inteira em função do receio de uma hipoglicemia noturna do filho ou da filha. Geralmente, as mães acordam todas as noites para conferir se a criança está bem.

2Hipoglicemias que ocorrem dentro do período de até 4 horas após as refeições.